sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Conservador, fundamentalista...

Frequentemente mal-compreendido, confundido e empregado como sinônimo de fundamentalista, não apenas por leigos e palpiteiros, mas inclusive por gente que se apresenta como perita em assuntos teológicos e eclesiásticos, o significante conservador precisa ser bem diferenciado para se compreender o quê significa.

Por certo, é preciso analisar o contexto em que ele é tomado como fundamentalista para saber se há de fato confusão. Digo isto porque usualmente os significantes, conservador e fundamentalista, são usados em debates teológicos, em discussões na sala de aula, em conversas nos corredores e nos bares e em textos polemistas como adjetivos para desqualificar interlocutores e detratores, para fazê-los saírem do nível da razão ou para fugir de entrar em contato com idéias que ameace as certezas de quem rotula. Nestes casos não se trata de desconhecimento, mas de tática de batalha verbal.

Para equacionar esse problema é preciso diferenciar o fundamentalismo enquanto movimento histórico e enquanto orientação teológica. No caso a distinção se fará em torno do fundamentalismo cristão-protestante.

O movimento histórico surgiu nos Estados Unidos no início do século 20, como uma frente interdenominacional, composta por protestantes conservadores, principalmente batistas e presbiterianos, de combate ao liberalismo teológico que, proveniente da Alemanha, estava se alastrando pelos seminários e pelas igrejas estadunidenses, provocando fortes tensões e divisões. Fundamentado em pressupostos racionalistas, o liberalismo advogava o método histórico-crítico como instrumento de interpretação da Bíblia; a subordinação dela à crítica literária e as descobertas científicas; e filtragem dos mitos, lendas e imprecisões históricas nela contidos, ou seja, o texto bíblico deveria revisto tendo a razão como crivo.

Como reação a essa investida, o movimento publicou entre 1910 e 1915 uma série de 12 volumes, “Os Fundamentos”, uma coleção de artigos para sustentar cinco pontos considerados por ele irremovíveis da fé cristã.

1. Inspiração e infalibilidade das Escrituras: toda a Bíblia é inspirada por Deus e, por isso, imune a erros, logo, não pode ser analisada criticamente.
2. Divindade de Cristo: Jesus é perfeitamente Deus, não apenas um ser divinizado;
3. O nascimento virginal de Cristo e os milagres: para os liberais o nascimento virginal de Cristo era um mito e milagres narrados eram eventos naturais interpretados fantasiosamente pela mente primitiva.
4. O sacrifício propiciatório de Cristo: Cristo morreu em substituição a humanidade, pelos pecados dela, não apenas para dar exemplo de abnegação a um ideal divino.
5. A ressurreição literal e o retorno de Cristo: A ressurreição foi um fato histórico, Jesus ressurgiu em “carne e osso”, assim como será histórico o seu regresso a Terra.

Chamar conservadores de fundamentalistas porque professam esses cinco pontos é um equívoco porque esses sempre foram defendidos pela ortodoxia cristã-protestante, com algumas nuances apenas na interpretação de infalibilidade.

Os conservadores entendem que a infalibilidade da Bíblia não se aplica a uma versão específica, como a King James, defendida por fundamentalistas, como os batistas regulares, mas aos originais – uma profissão de fé já que não temos acesso a eles. Estão cientes das diferenças em alguns manuscritos, dos erros dos copistas, das aparentes incongruências nas narrativas de eventos comuns entre os Evangelhos, nas citações dos autores e dos personagens bíblicos. Por isso, não dispensam os recursos da lingüística, da antropologia e da arqueologia, por exemplo. Todavia, a assimilação desses é subordinada ao pressuposto inegociável da infalibilidade das Escrituras. Eles não podem entrar em conflito com as doutrinas fundamentais, caso contrário, são descartados ou são adaptados a elas.

(Des) qualificar os conservadores de anti-intelectuais por submeterem, em última instância, o conhecimento a fé é ignorância ou má-fé. Até porque todo corpo de conhecimento – por mais científico e filosófico que advogue ser - tem lacunas, assimetrias e contradições. Se os conservadores procuram compreendê-las à luz da fé na ortodoxia, os liberais procuram à luz da fé na ideologia, que é tão metafísica quanto. O deus de amor-romântico dos liberais é tão mítico quanto o deus irado dos fundamentalistas, que muitos conservadores flertam.

Para mim o problema do conservadorismo reside naquilo que ele é acusado pelos liberais de não ser: racionalista. Na briga contra o liberalismo os conservadores por vezes recorrem às mesmas armas dos seus adversários. Por intermédio de suas teologias sistemáticas caem frequentemente na tentação – como se pudessem - de querer racionalizar a fé, de encapsulá-la em doutrinas insípidas, de reduzi-las a letras mortas que sufocam o espírito fluído da Palavra de Deus. Inclusive caem na presunção de achar que Deus tem compromisso com a instituição religiosa, que Ele está aprisionado nas confissões de fé, nos catecismos, que Ele precisa pedir licença aos concílios para seu Espírito soprar

Sua abordagem as manifestações subversivas do Espírito Santo, aos seus sopros que abalam as estruturas doutrinárias e institucionais, por vezes, é tão racionalista quanto à dos liberais modernos. Digo os modernos, porque os pós-modernos ou neoliberais, são receptivos a diversidade das expressões religiosas, a apreciação estética delas, suas vivências emocionais, o que não significa necessariamente que acreditem na autenticidade espiritual delas ou que validem o sistema de crenças do qual derivam.

Os conservadores precisam se lembrar sempre que por mais racionalmente defensável que seja a Bíblia, por mais provas científicas que se tenha a favor dos eventos narrados nela, o que fundamenta uma fé autêntica é a experiência com Jesus Cristo, a Palavra de Deus, perante a qual as Escrituras do antigo e do novo testamento estão subordinadas na sua interpretação. Experiência consciente para muitos e inconsciente para alguns outros.

Uma teologia bem elaborada racionalmente pode servir para o crescimento na Fé, no conhecimento da revelação, e para o testemunho público do Evangelho. O que é grande valia afinal, a razão é um dom de Deus a serviço também da Fé. Entretanto, a razão por si mesma, por mais bem intencionada e desprovida de preconceitos que esteja pode levar ao conhecimento de Jesus segundo a carne, do “Jesus histórico” procurado pelos liberais, mais jamais ao Cristo, porque esse só é conhecido segundo o Espírito.

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