sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Fundamentalismo evangélico

No último texto fiz uma diferenciação da orientação teológica conservadora em relação ao fundamentalismo, enquanto movimento histórico. Neste pretendo fazer uma breve apresentação do fundamentalismo como orientação teológica.

Por certo não podemos dizer que o fundamentalismo seja de todo antiintelectual e literal. Se a intelectualidade é desprezada no embate com liberais e conservadores, no confronto com carismáticos e pentecostais ela é ostentada. Ela é bem-vinda desde que esteja a serviço da defesa de seus fundamentos doutrinários e da versão King James da Bíblia (no Brasil, edição Almeida revista e corrigida).

Cabe aqui salientar que uma das marcas do fundamentalismo é a negação da contemporaneidade dos dons espirituais de cura, profecia e glossolalia (língua estranha) após o término do ministério dos apóstolos. O que é compreensível dentro da lógica fundamentalista, pois o reconhecimento desses dons implicaria na relativização da autoridade do clero e da doutrina. Por isso, é um equívoco classificar igrejas pentecostais clássicas, como a Assembléia de Deus e Congregação Cristã no Brasil, como fundamentalistas por não permitirem que as mulheres cortem o cabelo e os homens tenham cabelo comprido e, no caso da Congregação, exigir que as mulheres usem véu na igreja e quando oram, fundamentadas numa interpretação literalista e universalista da prescrição, atribuída a Paulo, a igreja de Corinto (I Coríntios 11.1-16).

No âmbito evangélico o fundamentalismo mais do que uma questão estética, de usos e costumes, é uma questão teológica.

Não podemos dizer também que o fundamentalismo é literalista ao ponto de não reconhecer as figuras de linguagem na Bíblia e acreditar literalmente que “os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas (Isaías 55.12b)”; ou de praticarem automutilações quanto pecam, seguindo ao pé da letra as palavras de Jesus: “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno (Mateus 5.29-30)”. Chega, também, a reconhecer algum tipo de condicionamento cultural na mensagem bíblica, como a prescrição ao uso do véu.

Mas, então, o que distingue basicamente a orientação fundamentalista da orientação conservadora? Como já foi dito no texto anterior o movimento histórico fundamentalista foi de natureza interdenominacional e se caracterizou pela defesa de cinco pontos basilares da fé cristã, entendidos como irretocáveis, sujeito a penalidade de ser considerado herese e até mesmo apóstata quem renunciasse a qualquer um deles. Relembrando os pontos: 1) inspiração e infalibilidade das Escrituras; 2) divindade de Cristo; 3) seu nascimento virginal e a historicidade de seus milagres; 4) sua morte expiatória; 5) a literalidade de sua ressurreição e de sua volta ao mundo.

A heterogeneidade do movimento se unia em torno desses cinco pontos com ligeiras diferenças de interpretação em relação ao primeiro. Entretanto, como movimento heterogêneo que era logo apareceram as nuances.

Uma dos grupos - que, posteriormente passou a se apresentar como os legítimos fundamentalistas - passou a reivindicar que a interpretação escatológica pré-milenista dispensacionalista era também um ponto fundamental da fé. Conquanto haja matizes nessa linha escatológica basicamente ela prega uma distinção entre Israel – os judeus salvos - e Igreja – os gentios (não-judeus) salvos. Entende que as profecias do Antigo Testamento se relacionam ao Israel terreno. E que Jesus voltará a Terra duas vezes. Na primeira de forma secreta quando arrebatará a Igreja e os judeus convertidos. De imediato se iniciará um período de sete anos de intensa tribulação quando haverá uma conversão em massa de judeus à fé cristã e o Anti-Cristo se manifestará. No fim Cristo retornará pela segunda vez, porém pela visivelmente pela primeira vez, derrotará o Anti-Cristo e os inimigos de Israel e por mil anos literais reinará sobre ela.

Isto gerou controvérsias no movimento porque ele era composto por grupos que professavam o amilenismo, que entende os mil anos como um tempo indeterminado de governo espiritual de Cristo iniciado após a sua assunção, e o pos-milenismo, que entende que Cristo voltará após um período de mil anos na Terra de paz e prosperidade decorrentes do avanço da pregação do Evangelho. Havia também os pré-milenistas que entendiam que o posicionamento escatológico era uma questão secundária.

Como desdobramento dessa linha de interpretação os fundamentalistas se alinham incondicionalmente è defesa do Estado de Israel, em especial de sua direita política. Os críticos e adversários de Israel são taxados indiscriminadamente de agentes e facilitadores do processo de instalação do governo mundial do Anti-Cristo. A ONU, a União Européia e o Partido Democrata dos Estados Unidos são identificados como precursores desse futuro reino satânico. Fica aqui clara a serventia dos fundamentalistas ao Partido Republicano dos Estados Unidos, em especial a ala da direita da cristã.

Em material de moral privada, os fundamentalistas passaram a pregar a abstinência do consumo de bebidas alcoólicas e do tabaco, considerados agentes do declínio moral dos cristãos europeus. Mesmo o consumo moderado do vinho passou a ser considerado um vício. Na eucaristia das igrejas fundamentalistas o símbolo do sangue de Cristo obrigatoriamente é o suco de uva.

Em matéria de política eclesiástica os fundamentalistas passaram a pregar a “caça às bruxas”, isto é, o expurgo de todos os liberais – equivocada ou estrategicamente identificados de forma generalizada como socialistas ou comunistas -, neoortodoxos e pentecostais da igreja e dos seminários, ou diante da tolerância a estes por parte da instituição, a separação dela. Ou seja, a determinação era que um autêntico fundamentalista, isto é, no entender deles, um autêntico cristão, não pode participar de uma igreja ou de um movimento que abrigue tendências desviantes ao seu padrão, mesmo que a confissão de fé esteja alinhada com os pontos fundamentais da fé fundamentalista.

Em matéria de política pública, nos Estados Unidos, p. ex, os fundamentalistas passaram a uma campanha ostensiva para combater a secularização do Estado, lutando contra a legalização do aborto, do casamento homossexual e da pesquisa com células-tronco embrionárias, e a favor da oração cristã e do ensino do criacionismo nas escolas públicas. Eles têm servido também como legitimadores morais das guerras patrocinadas pelos EUA.

Com a ciência e a cultura o fundamentalismo não dialoga e nem busca pontos de convergência. Elas só são úteis se não entrarem em colisão com seus valores morais e se servirem como instrumento de propagação da sua fé. Divergem dos conservadores em geral que entendem que a cultura, mesmo produzida por não-cristãos, pode refletir elementos da verdade, da beleza divina e por isso ser apreciada, pois partem do pressuposto que toda verdade, beleza e virtude, independente da crença religiosa de quem profere, procede de Deus que opera em e através de toda a humanidade.

Quanto a mim diria aos fundamentalistas que antes que prescrevessem aos seus prosélitos seu ascetismo puritano e censurassem a inobservância dele por outros cristãos se lembrassem da advertência interpelativa de Paulo, o apóstolo, aos cristãos da Galácia e pensassem se ela é pertinente a eles: “Quero apenas saber isto de vós: recebeste o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne (Gálatas 3.2-3)”?

Que antes de deflagrarem suas cruzadas e seus piquetes moralizantes na sociedade e montarem suas estratégias de ocupação do poder lembrassem da recomendação de Zacarias, o profeta, a Zorobabel, líder político judeu: “Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos (Zacarias 4.6b)”. E das palavras de Jesus a Pilatos, governador romano na Judéia: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui (João 18.36)”.

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