sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A vida como ela é

Uma dose média de realismo é suficiente para nossa consciência se certificar que a vida não é ideológica, ela não é como deveria ser ou como a gente gostaria que fosse, a vida é como ela é. Certamente alguém há de pensar com razão, “mas se todos pensassem assim, os negros ainda seriam escravos, não poderiam freqüentar os mesmos lugares que os brancos, os operários continuariam trabalhando mais de 12 horas por dia em condições insalubres e sem direitos trabalhistas, a mulher continuaria privada de cidadania plena, as bruxas e os “cientistas hereges” ainda iriam para a fogueira, a natureza estaria praticamente cimentada, e a pobreza estaria mais vergonhosa e clamorosa do que está”.

Não! Não se trata de conformismo, de resignação. Muitos menos de sutilmente legitimar as injustiças sociais, de ter uma postura cínica diante da desgraças da vida, ou de sugerir algo na linha de que “os fins justificam-se os meios”. Trata-se, sim, de admitir que para melhorarmos nossa vida e encontrarmos respostas relativamente eficazes para os problemas do mundo é preciso fazer um diagnóstico realista. E isto implica reconhecer que a realidade nua e crua geralmente não é bonita, ou pelo menos não reflete a beleza que nossos olhos querem enxergar nela.

A realidade é que negros, brancos, amarelos e mestiços, os ricos, a classe média e os pobres, os homens e as mulheres compartilham, em maior ou menor grau, das mesmas virtudes e dos mesmos vícios. Por isso, o desencantamento é genérico. O romantismo é desmistificado, pois a realidade mostra que nem sempre os que militam em prol das causas populares, em favor dos pobres e oprimidos, o fazem por empatia por eles ou por fome e sede de justiça; mas o fazem simplesmente por desejo de ascensão social e de se projetar politicamente. Como há também os que fazem por marketing social, para aliviar a consciência ou por ressentimento contra burguesia que eles queriam pertencer.

A realidade é "desideológica" e desmistificadora porque mostra que há mulheres – porque incrível que pareça até feministas – que gostam de ser “mulher de malandro”; que há negros que quando prosperam economicamente - às vezes usando o movimento negro para isso – tornam sua alma branca; que há homossexuais assumidos, homofóbicos e tarados; que há ecologistas que desmatam para construir suas casas; que há defensores dos direitos humanos que quando são ou alguém de sua família é assaltado pedem para o policial dar uma surra no bandido; que há índios traficantes e contrabandistas; que há budistas fanáticos que destroem templos cristãos; que há teólogos da libertação e padres de passeata que cobram cachês milionários para palestrar contra as mazelas do capitalismo e ridicularizar seus colegas pop star encantados pela sociedade de consumo; que há pastores que criticam a institucionalização da igreja, o mercado gospel, os seus colegas mercadores da teologia da prosperidade, que hasteiam a bandeira da ética, pregam uma quebra de paradigmas e uma reforma na igreja evangélica, mas que na sua prática ministerial se apegam com “unhas e dentes” aos seus postos na maquina eclesiástica, entregando até a “cabeça” de seus colegas - se preciso for -; e, submetem sua equipe ministerial a um plano de metas e a avalia segundo critérios de produtividade estatística com a frieza característica de um gestor de recursos humanos.


Como sou cético em soluções plenamente eficazes para os problemas da humanidade e cada vez menos otimista e romântico em relação ao ser humano, cada vez menos, me abalo e me surpreendo com suas sombras e seus esqueletos. Tampouco me apego a isso para desmoralizar causas sagradas e direitos legítimos, como a promoção social dos mais pobres, a luta contra a discriminação étnica, racial e de gênero, e a preservação do meio ambiente. A verdade de uma causa não se torna mentira socialmente falando por que quem a advoga o faz por motivos mesquinhos.

Estou certo que na vida numa grande parte das vezes não é possível escolher entre o ótimo e o bom, tampouco o que é o excelente e o que é péssimo se apresentam, muitas vezes, bem diferenciados. Não poucas vezes – se não na maioria delas – escolhemos entre o razoável e o ruim, quando não entre o ruim e o horrível.

Quando lembro que o regime que mais matou gente na história – o comunismo - foi o que prometia a erradicação da pobreza, a eliminação das classes e das injustiças sociais, de toda exploração humana, e a construção de uma nova humanidade que produziria uma sociedade livre, justa e harmônica, seguindo o lema, “De cada um segundo suas possibilidades e a cada um conforme suas necessidades”, meu ceticismo se acentua e se acrescenta a ele um pouco de temor.

Por isso, quando percebo alguém acreditar ter sido encontrada a chave da história, a panacéia para os males da humanidade, ao meu ceticismo se acrescenta uma dose de temor. Afinal sempre que alguém acreditou tê-la encontrado se convenceu de que tinha licença ética para varrer e limpar do mapa os obstáculos para a solução final.

Acredito, sim, que o mundo pode ser melhor, que a viver vale a pena, que é vital, doses de romantismo para viver e ou, pelo menos, sobreviver, que um realismo excessivo é humanamente insuportável. Mas descreio radicalmente que seja possível ter uma existência autêntica e uma vida saudável acreditando que ela pode ser sempre uma festa, uma balada por dia, que a gente pode estar sempre na crista da onda, que o mundo pode e tem que ser do jeito que a gente quer, que todas nossas fantasias podem se tornar realidade.

Eu descreio simplesmente porque nunca conheci ninguém que tenha evoluído, que tenha tido um crescimento sustentável na vida sem superar suas fantasias e protestos infantis ou por ter se revoltado contra o universo porque ele não conspirava a seu favor. Se alguém conhece, por favor, me apresente.

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